Conheci Angela em 99, quando era assistente de produção no Canal Azul, produtora de documentários, e aquela alemoa apareceu, recém chegada de uma temporada em NY, para roteirizar e editar uma série de documentários. Eu decupava as fitas brutas e entregava para ela escrever a história que se sucederia. Ali nasceu uma amizade incrível.
Ela acreditou que eu seria uma boa produtora e me levou para trabalhar no Video Show, depois me incentivou a fazer o teste para ser repórter. Emprestou seu apartamento em SP para eu morar sozinha e aprender um pouco mais da vida, sem cobrar aluguel. Segurou minha mão diversas vezes. Por trás da força que aparentava, havia uma doçura e uma generosidade sem tamanho, dividindo lugares, segredos, sabores - Z-Deli, restaurante grego do centro e mais um monte de lugares que íamos a cada vez que ela aparecia em São Paulo...ela colecionava pinguins e tinha orgulho de ter em sua coleção o mais feio pingüim do mundo, achado em Crato, no Ceará. Ela ria das loucuras que todo mundo levava a sério, saia sempre com um sorriso, uma palavra de estímulo e o chicotinho na mão para cobrar direito quem perdesse a atenção. Instigava a pensar criticamente, em não aceitar as imposições do mundo, em ler, remexer e não tentar ir pelo caminho mais fácil. A acreditar que vale a pena se jogar e sonhar.
Não sei bem como ela esqueceu-se disso. Há um ano ela teve um piripaque nervoso que gerou uma tristeza imensa no seu coração. A minha resposta foi o e-mail abaixo:
" Imagine você acordando em pleno feriadão. Abre o jornal, sentada na cozinha....depois do cotidiano, da política, de todos os absurdos publicados você acha que nada mais te surpreende. Então pega o caderno 2 que um pouco de cultura não faz mal a ninguém e lê, ali nas linhas, que a sua amiga, aquela que você tanto gosta, teve um piripaque. E um piripaque dos brabos pelo que se percebe. Aí quem tem um piripaque é você. Mas tenta manter a calma, respirar...e continua no jornal...e chega na Ilustrada, uma página, outra página e lá está a sua amiga, a sua irmã querida e o piripaque dela figurando nos jornais. Susto. Respiro. Tento o telefone que não funciona. Começo uma busca louca pelo telefone da mãe, da irmã, de alguém no sul que possa me dar notícias. Nada. E o coração que já é um orgão de pulos, parece pipoca a beira de estourar.
Num primeiro momento penso na última vezes que a vi, a minha querida sempre cheia de luz andava meio descrente. Percebi em suas feições: a pele brilha menos, o olhar está cabisbaixo, sinais de que ela anda esquecendo de pensar em si. Ela é linda e é assim, esquece dela vez em quando, mesmo não podendo. Mas nada que pudesse sugerir um piripaque. Sugeriu um e-mail (nunca mandado, preciso perder esse hábito) falando para ela se cuidar, para não baixar a guarde e nem deixar de abrir o coração.
Porque ela, essa minha amiga, esquece que é muito mais do que a profissão que desempenha: ela é uma mulher cheia de garra, que fez por si e só algo que antes nunca tinha imaginado quando separava nas férias "pinto para lá, pinta para cá". Ela chegou onde quis, e isso ainda é menos do que pode fazer, porque ela é abençoada com a capacidade de empreender o que quiser. Ainda bem que não é maluca, porque se soubesse o poder que tem, dominava o mundo. Ela já foi mulher, namorada, esposa, casada. Já foi mãe, irmã, filha, sobrinha, amiga. Já foi reporter, produtora, redatora, diretora. Ela é o que bem quiser.
É aquela amiga que abriga a todos em seu coração, que se pudesse resolvia o problema do mundo e ...esquece dos problemas dela, (...) É aquela amiga destemida que se joga quando acredita: seja um amor, seja um trabalho, seja uma causa....mas que esquece de se jogar no seu bem estar. (...)
É aquela amiga que acredita nos outros, nela, nas causas...mas que esquece de acreditar no mais importante - na sua própria importância. (...)Isso vai além de competência, que ela tem de sobra, ou de profissionalismo, ou de sucesso, ou de poder, isso está baseado no que ela carrega no coração, no espírito, nos olhos...isso está além da profissão que ela tem no momento - e no momento ela é diretora geral da porra toda, mas quem a conhece sabe que ela é muito mais que isso. Isso vai além do fato de ela poder hoje resolver todos os problemas financeiros da família. Isso vai além dela frequentar a favela e o Projac, dela ganhar relógio a cada dia e pensar que falta comida na casa da tia. Isso vai além de dinheiro, poder, sucesso e profissão. A importãncia dela , da sua existência, está no que ela traz dentro de si, uma força maior, um amor genuíno, uma inteligência divertida, uma sabedoria sagaz, um humor mordaz que se traduzem em risos tomando café, em bate papos numa tarde, em e-mails (lindos) escritos em madrugadas acordadas, em pedir mais da vida e de todos, porque sabe que é possível querer mais para se ser feliz...
Ela é Angela, feminino de anjo, aquela que veio á Terra abençoar aqueles que escolhidos foram para sua companhia desfrutar.
*****
Amiga, não reli. Perdoe os erros que eu perdôo o susto que você me deu. Mande notícias, quero saber de você.
E da próxima vez que você aprontar uma dessas eu te esgano.
Te amo
Te cuida
beijos
R."
Não posso mais esganá-la porque ela se foi ontem. Desistiu. Caput. E eu fico aqui matutando, tentando entender o que aconteceu, porque essa história terminou assim. Na hora que falaram, não acreditei e liguei no celular dela. A Secretária eletrônica com a sua voz quase fez acreditar que ela estaria ali e em pouco iria me ligar. Não ligou até agora. Apesar de ainda não acreditar, fui remexer nos antigos e-mails e reler nossas conversas. Encontrei uma carta de amor que ela uma vez enviou , e que sintetiza a inteligência, o brilhantismo e a maneira como via a vida.
"-----Mensagem original-----
De: Angela Sander
Enviada em: quarta-feira, 20 de agosto de 2003 13:49
Para:
Assunto: MOMENTO LITERÁRIO DA MADRUGADA
xxxx,
Fiquei pensando se mandava ou não......fiquei pensando no momento pânico.........fiquei pensando......... Mas não deu pra ir contra tudo que me ocupou a madrugada inteira (e tem me ocupado os dias também)....... Então eu mando.......
Angela
No meu dicionário, procurei destino. Ele estava lá com vários sinônimos. Antônimos, nenhum. Por quê? Não sei. É muito difícil descobrir porque privaram o destino de antônimos. Não sei, repito, e nem quero saber. Seja qual for o caso específico, é sempre pouco provável que se chegue ao motivo pelo qual as pessoas agem. Isto, creio eu, se deve ao fato óbvio de ser infalivelmente possível encontrar mil explicações lógicas, evidentes, contraditórias e se anulando duas a duas, para dizer por que fulano agiu daquela maneira. O que me interessa no momento é tirar o melhor proveito desse negócio, para mim estranho e um tanto ameaçador, do dicionarista não ter encontrado antônimo para o destino.
Você pode me dizer que salada não tem antônimo, nem carrapato, nem eu mesmo, e nem mesmo você. É uma opção pensar assim, dar boa noite e ir dormir em paz. Eu não consigo mais nem que queira, e gostaria. É que de uns tempos pra cá não está dando pra abafar umas vozes piratas que insistem em falar comigo, agudas, aflitas, me fisgando, como querendo me pôr a par de coisas urgentes que não entendo direito, porque falam todas ao mesmo tempo. Tento ouvir nas entrefalas e nisto vou driblando a solidão, o desespero, a vontade de morrer e os outros fantasmas coadjuvantes que brincam de assombrar a minha alma.
(...)
Mas voltemos ao destino, ele bate à porta, dele não se foge, com ele não se brinca, é o dono de todos os fatos e a todos fataliza. Está escrito, e assinado por Deus. E falando nisso, uma coisa puxa a outra, vou contar um caso. Deu-se que Deus, certa feita, tomado por divina obsessão, escreveu de um só fôlego o diário da eternidade e nos criou pra encená-lo. Durante algum tempo divertiu-se com aquilo, mas aos poucos foi perdendo o interesse, achando tudo uma grande bobagem e, como somos feitos à sua semelhança, sabemos como é penoso alguém não se contentar com a própria obra. Vai daí que passados mais alguns milênios, Deus irritou-se de vez com a dança monótona dos astros no geral e em particular com o formigar inconsequente dos homens sobre a terra. Aquilo era a imagem palpável da Sua infinita mediocridade. Caminhou então, numa incomensurável solidão e absolutamente triste, para os confins do universo. Dali, mergulhou de cabeça no vazio e dissolveu-se. Se ele ressuscitou no terceiro dia, no quinto ou no décimo primeiro, se ressurgiu em uma nova dimensão nas propriedades de um outro deus qualquer, são hipóteses que valem rigorosamente o peso de sua inutilidade.
O que parece importar a todos, é que vamos morrer, como Deus quis e o fez. Você dirá que Deus era um suicida e você não o é. E que diferença faz? Vai morrer do mesmo jeito, como eu, como nossos pais , como nossos filhos. Você não quer que suas queridas pessoas morram e elas morrem. Você não quer morrer de jeito nenhum e vai morrer, meu caro. É foda e põe foda nisso.
E o filme no domingo de manhã? E a pipoca quentinha? E os vinte anos com a vida estalando de nova ao furar uma onda num dia de verão? E aqueles outros dias, com suas noites de inverno, ao lado de você, duplamente aquecida embaixo do edredon e na frente da tv? E os amigos reunidos dia adentro e noite afora na comovente conivência do simples ato de conviver? E tudo mais que era bom?
Tudo artes da fé. Ouvi agora uma frase clara, solta. Uma das vozes sobressaiu, destacou-se nitidamente das demais e gritou rápida. Tudo artes da fé! Foi o que eu ouvi. A fé, xxx. A fé que de repente me livra do pudor de escrever a você, umas tantas linhas do meu mais puro, sincero e desarmado amor. Declaro-me emocionada e convido você a irmos juntos aos confins do universo atirar no vazio o diário que Deus esqueceu-se de levar. Vamos lá, vamos dar ao destino o destino que ele merece. Vamos tirar a vergonha da cara e cair de boca na vida enquanto o seu lobo não vem. E doa a quem doer. Vamos e venhamos. O problema social, o problema econômico, o problema moral, o existencial, o estrutural, o sorrateiro, o diagonal, o sensacional, a solução deles não será nunca a causa da felicidade. Solução não é jamais a causa de coisa nenhuma. Solução é consequência. Só há uma saída possível, seja feliz, seja radicalmente feliz e esteja nisso o antídoto e o antônimo procurados. Seja feliz, destine-se você mesmo e passar bem. Case com a felicidade e lhe seja fiel de papel passado em todos os cartórios, em todas as igrejas, bares, viadutos, veículos, passeatas, compromissos, consultórios, redutos e municípios. Se doer, berre à vontade, mas seja feliz. Envelheça descaradamente e fazendo alarde, com seu melhor sorriso nos lábios. Morra numa boa, como quem vai ali e não volta. Ou volte, se lhe for possíivel, e não esqueça de me procurar e me dar um beijo e um abraço, e de fechar a porta e deixar lá fora a solidão. "
com carinho, amiga, descanse onde estiver. eu te amo.